Por Patricio Velasco F., pesquisador da ONG Derechos Digitales | #Boletim17
O aumento do acesso a novas tecnologias e em especial o crescimento da quantidade de crianças e adolescentes que possuem celular com conexão à internet implica em numerosas consequências no momento de exercer direitos humanos fundamentais como a privacidade.
Uma boa maneira de abordar a questão é considerar os números do fenômeno. Por exemplo, segundo os dados da pesquisa Kids Online aplicada no Brasil em 2016, 85% das crianças e adolescentes acessam a internet no celular (sem que existam diferenças significativas segundo o nível socioeconômico das famílias nem o sexo dos respondentes). Esse tipo de dado não é excepcional no contexto regional. A queda nos preços dos dispositivos e a ampliação da infraestrutura de internet permitiram uma crescente massificação do acesso à rede na América Latina.
O acesso massivo à internet e sua maneira particular de uso tem, igualmente, outras implicações. Com a ampliação da conectividade através de celulares, os usos que crianças e adolescentes podem fazer dessas tecnologias se multiplicam e, além disso, o eventual controle preventivo que os adultos responsáveis pelos menores podem exercer a respeito da navegação de crianças e jovens também é restrito (Byrne, Kardelfelt-Winther, Livingstone, & Stoilova, 2016). O controle não pode ser permanente e o conhecimento que crianças e adolescentes adquirem sobre as novas tecnologias pode deixar os adultos rapidamente desatualizados, configurando um cenário onde são os menores que se “alfabetizam” com maior rapidez sobre os novos desenvolvimentos tecnológicos (Ólafsson, Livingstone, & Haddon, 2013).
Além disso, é necessário considerar um terceiro elemento relevante: o modo que crianças e adolescentes experimentam a conectividade. A experiência da internet tem sido mediada principalmente pelo uso de plataformas que são acessadas através de aplicativos para celular. No caso chileno, por exemplo, 80% das crianças e adolescentes declaram ter utilizado redes sociais nos últimos meses.
Essa configuração, considerando um amplo acesso à internet através de dispositivos pessoais, alto nível de familiaridade com as novas tecnologias e a prevalência de redes sociais implica em desafios significativos no momento de abordar a pergunta sobre privacidade online.
Para autores como Boyd, a proliferação da conectividade através de redes sociais com ênfase no uso feito por crianças e adolescentes influiu em uma mudança do que compreendemos por privacidade online. Assim, se antes para conseguir publicidade era necessário mobilizar e gerir recursos, atualmente estaríamos frente a um cenário onde se compreende que o que é público se encontra determinado “por padrão”; enquanto o que é privado opera como uma construção que requer não apenas mobilizar recursos, mas também desenvolver estratégias que sejam capazes de estabelecer limites ao acesso e difusão dos conteúdos gerados.
Essa mudança na compreensão da privacidade possui amplas consequências na hora de avaliar o comportamento online de crianças e adolescentes. Além dos perigos que o uso de informação pessoal de terceiros pode implicar (que já foi amplamente exposto no debate sobre a Cambridge Analytica) é necessário situar essa preocupação no contexto de uma crescente transformação da vida social em dados, onde as experiências são registradas através de diversos sensores e dispositivos, formando um rastro duradouro da vida das crianças que se socializaram através dessas plataformas (Lupton & Ben Williamson, 2017).
Então devemos nos perguntar novamente em que implica e como se configura a privacidade online para crianças e adolescentes. Para Balleys & Coll, a privacidade se refere à capacidade de gerir a intimidade de uma pessoa com seus pares, o que implica que se configure como uma forma de capital que permite a crianças e adolescentes consolidar seus vínculos e status. Essa gestão da intimidade poderia estar representada nas diversas formas em que os menores se relacionam com as plataformas online e, particularmente, com as restrições que estabelecem de sua participação nelas.
Pelo que acabamos de mencionar, é importante avaliar quais são as habilidades e capacidades que crianças e adolescentes demonstram em redes sociais ao configurar sua privacidade online. Assim, antes de focar na privacidade como conceito abstrato, é possível verificar quais são os recursos que efetivamente são mobilizados para definir o que cada um quer resguardar como privado. Ao adotar essa abordagem, surgem novas perguntas: Todas as crianças e adolescentes estão em igualdade de condições para mobilizar tais recursos e configurar a sua privacidade online? Com relação a isso, foi apontado que a alfabetização digital e o desenvolvimento de habilidades online reproduz as desigualdades sociais de base (Helsper, van Deursen, & Eynon, 2015), questão que em contextos como o latino-americano, com amplas diferenças entre os diversos estratos socioeconômicos, pode resultar ainda mais urgente.
Dessa maneira, estamos frente a um cenário complexo: o exercício da privacidade não só implica gerir recursos, mas também esses recursos não estão igualmente disponíveis para toda a população. Em termos de habilidades online, essas lacunas são particularmente significativas. Como exemplo, e considerando novamente os dados da Kids Online Brasil, é possível apontar que 74% das crianças e adolescentes dos estratos altos sabem como mudar a sua configuração de privacidade em redes sociais, em comparação com somente 50% de quem pertence ao estrato mais baixo.
Perante essa situação é necessário desenvolver estratégias que favoreçam a criação e gestão de recursos que permitam que crianças e adolescentes sejam agentes ativos na configuração da sua privacidade online. Isso implica enfatizar o desenvolvimento de habilidades e estratégias para um uso seguro da internet, capazes de considerar que, no cenário atual, a privacidade não é um conceito estático, mas uma implementação prática e cotidiana. Para isso é imperativo habilitar não somente as próprias crianças e adolescentes, mas também os adultos que formam parte do seu processo educativo, tanto nas famílias como em estabelecimentos educacionais.
Então devemos nos orientar pensando no desenvolvimento de programas que permitam aos menores discernir o que querem manter no âmbito privado e quais são as ferramentas e estratégias tecnológicas efetivas para esse fim. Assim, estaremos permitindo que crianças e adolescentes desenvolvam competências digitais para a construção da sua própria privacidade online, sem que isso presuma que um determinado conteúdo deva ser resguardado. É relevante que essa formação seja capaz de reconhecer as diferentes identidades étnicas, religiosas e sexuais existentes na sociedade, permitindo assim que a participação online de crianças e adolescentes respeite as diferenças culturais, enquanto lidamos com as lacunas de classe que podem incidir na gestão da privacidade.